De onde vim, para onde vou
Péricles Faria | Por Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
Péricles Faria | Por Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
O exame de DNA se popularizou. Mais barato e fácil de fazer, ele virou uma importante ferramenta para resgatar a ancestralidade negra do povo brasileiro. Tilt propôs, e 20 personalidades toparam fazer o teste e olhar para essa cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil (veja abaixo). Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim", que dá início ao projeto documental Origens. Agora, é hora de elas contarem o que descobriram e de onde vieram. Com a palavra, Péricles:
Eu me senti acolhido, essa é a sensação que dá: de alívio. Nós viemos de algum lugar, temos uma raiz. Saber de onde veio dá um sentimento de pertencimento."
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?
Uma pitada de Caribe, outra de Alemanha e grandes quantidades de Angola. Uma vida inteira marcada pela musicalidade, e agora o cantor Péricles Faria, 51, acredita que entendeu por que sente aquele calorzinho no coração quando ouve os sons típicos da América Central. Dos alemães, talvez tenha vindo o gosto por cerveja, brinca.
Ele fez o teste de DNA não só para saber de onde vieram seus antepassados mas para encontrar o que buscou durante toda juventude: algo que pudesse chamar de "meu lugar" —veja mais no documentário "Origens". "Eu fiquei muito feliz e, ao mesmo tempo, ansioso e pensativo do que iria encontrar. Mas, quando você procura saber quem é, sem rótulos e julgamentos, a coisa fica mais leve. Tentei não me prender a nada, só pensei: saber é sempre bom", conta.
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A mistura de sotaques dos vizinhos de Santo André, na Grande São Paulo, ajudou o cantor a construir uma ideia de pluralidade e respeito. Mas, na escola, ele e os irmãos, todos negros, notaram que o tratamento mudou. "Nós sabíamos que éramos diferentes, embora semelhantes, mas aí você vai para a escola e tem a semana do folclore, a semana da consciência negra, isso meio que acende uma luz", lembra.
Isso ficou gritante na adolescência quando a garotada já sabia escolher a roupa e a música que queria. "A sociedade acaba mostrando, e você, para fazer parte do grupo, procura os seus. Começamos a curtir bailes e fomos vendo que o negro tinha que ir na festa tal, vestir roupa tal, tênis tal e cortar o cabelo em tal salão. O ser humano, para se encaixar, procura seus semelhantes e assim foi com a gente", diz.
Ao mesmo tempo, ele ia construindo sua identidade sob altas influências de música. Os presentes, explica, eram sempre discos. "Não só porque todo mundo podia usufruir, mas porque eram cantores com os quais a gente se identificava e a música falava alguma coisa para nós", explica.
A parca ideia que Péricles tem de suas origens veio dos causos que a avó materna guardava na cabeça. Ela contou que um tio-avô era músico e poliglota. Não por coincidência, Péricles abraçou a oralidade como profissão. Foi o samba que lhe apresentou seus heróis da tradição oral, "aqueles que sabem contar suas histórias e as histórias de quem veio antes". Neguinho da Beija-Flor, Jorge Aragão, Fundo de Quintal, Jovelina Pérola Negra, Ivone Lara, Paulinho da Viola...
"Quando eu os vi fazendo isso, pensei: quero fazer isso também, porque deixa uma história que muita gente precisa saber. O próprio Arlindo Cruz dizia: 'quem não sabe de onde veio não sabe pra onde vai, quem não tem passado não tem futuro'."
Se a história negra é muito pouco escrita, Péricles ressalta que ela é muito bem cantada:
"Os sambas da Mangueira falavam que existiu Dom Obá [militar filho de alforriados que, após a Guerra do Paraguai, virou o Príncipe do Povo] e Chico Rei [nome lendário da tradição mineira que comprou sua alforria]. Existiram também as mulheres mineiras que, após a escravidão, viraram grandes empresárias e iniciaram um reinado fazendo doces... Eu notei que eles ensinam muito", explica.
Nem sempre os sambas ou os anciões da família resolvem tudo. "Quando busca querer saber mais, a gente se vê impotente: 'Poxa, e agora? Como saber de onde eu vim, quem são meus ancestrais?' (...) Então, já deu uma luz, fiquei aliviado. Daqui para frente, posso construir a minha história de uma outra maneira e saber o que buscar."
Para Péricles, o teste de DNA "não abre uma clareira na mata, ele abre uma avenida". Ele lembra que os negros têm um passado, que foi apagado. Isso esconde os grandes personagens da negritude que levantaram bandeiras e lutaram por liberdade e irmandade.
Péricles diz que, pensando nos filhos, assumiu o posto de guardião do legado familiar. Já planeja conversas sobre isso com o filho Lucas e, futuramente, com a filha Maria, ainda um bebê.
"Só toca quando a gente vira pai. Quando o mais velho nasceu, pensei: 'Preciso deixar uma história'. Busquei muito mais cultura para mim para passar isso a ele. (...) Agora, vou passar a meus filhos e sobrinhos a ideia de quem sou eu, os costumes do lugar de onde a gente veio, para que possamos seguir muito mais seguros", explica.
Publicado em 20 de abril de 2021.
Reportagem: Helton Simões Gomes e Ismael dos Anjos
Coordenação e Edição: Fabiana Uchinaka e Helton Simões Gomes
Colaboração: Lola Ferreira
Produção: Barbara Therrie
Arte: Deborah Faleiros
Fotos: Wanezza Soares
Este é um capítulo da série
Quem não sabe de onde veio não sabe para onde vai?